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Talha de vida

Young Woman Reading - Umberco Buccioni (1909)
Ela era dessas que apreciava as palavras simples, extraídas dos restos de memória. 

Aquelas palavras moldadas ao ouvido de quem estudou pouco, mas que abraça o aprendizado doado pelo viver. 

Perdida entre as tantas enraizadas nos livros, ela vagava em busca de uma sabedoria que nunca alcançaria, mas há que se redimi-la pela sensibilidade herdada da infância. 

Naquele tempo em que aquietava a alma a observar os homens de mãos calejadas, andar curvado, sem pressa e sorrisos naturalmente felizes. 

Naquele tempo em que investia fios de horas a registrar as mulheres de coque acinzentado, roupas de avós, nenhuma vaidade, a entreterem-se nos cheiros da cozinha. 


- Quer uma "taia", minha menina?

Ela aceitava e olhava de soslaio para o buraco da parede onde morava o sapo. 

Tantos anos mais tarde, em meio às leituras, esbarraria com a palavra antiga: "taia" é igual a talha, que é igual a repartir a produção com o senhor do feudo.
A história avança, mas deixa seus rastros. Ela fechou as palavras que amparava sobre o colo e pôs-se a um instante de nada. 


Na virada seguinte, percebeu-se no entrelaço da história, daqueles que pagavam "banalidades" para moer o trigo, assar o pão e tirar da terra uma talha de vida.  


Realidade sem cor

Do livro: Floresta Encantada, de Johanna Basford
Cada uma na sua década, as três lembravam-se das gulodices da infância. Enquanto a caçula e a mais velha riam das misturas absurdas, a do meio mantinha-se em mistério. 

Antes de placidamente dizer o que escreverei a seguir, as duas não haviam notado a quietude da amiga do meio. Foi então que ela usou a voz doce para voltar à infância: 


"Nunca reclamei quando era menina. Mas quando a dor apertava, eu esticava a minha redinha e ia dormir para a fome passar". As duas entreolharam-se, cessaram o riso e voltaram à realidade sem cor das desigualdades do Brasil.